terça-feira, 13 de novembro de 2007

sorrateiras, essas palavras

Salman Rushdie, o autor de Versos Satânicos, ao responder a por que preferia escrever ficção, afirmou: "Na ficção pegamos o leitor desprevenido".

Então, já que eu sempre quis ser ninja, lá vai:


Era um anjo. Um anjinho filhote, de asas pequenas e ainda frágeis, embora ávidas pelo mundo supostamente fantástico das estripulias aéreas.
Certo dia, em meio à suas brincadeiras, quis tentar voar mais alto que as já tediosas planadas. Com muito esforço passou por cima de uma árvore de prata e caiu do outro lado numa nuvem fofinha. Estupefato, empolgou-se, e foi logo iniciando mais um impulso. Desta vez atravessou o ar acima de três casas de anjos. Capotou numa praça, ralou os ombros e os joelhos. Mas e daí!? Ele estava quase voando. Não como um arcanjo maestral, mas isso era questão de tempo.
Queria ver até onde conseguiria chegar. Da praça era possível avistar o palácio d'Ele lá no alto. Malicioso, curioso e cheio de energia, o anjinho aqueceu as penas e começou uma grande corrida. Atravessou toda a praça, a avenida e saltou, o mais alto que pode. As asinhas batendo como as de um beija-flor. E foi. Voando, voando. Toda a cidade abaixo dele cada vez menor. Vôou e vôou e, bem quando chegaria no palácio, trombou no muro e caiu.
Sim, caiu. Como uma rocha. Desacordado. E você sabe o destino de todo anjo que cai. Sem saber, o pobrezinho se dirigia rapidamente para o Inferno. Ou não!
Tinha uma Terra no meio do caminho. E caploft, foi lá mesmo que espatifou-se o coitado. Um sujeito, barba por fazer, chapéu surrado e botas cheias de furos, tropeçou no pequeno:
- João! Ô João! Vem ver o que achei! Um ganso. Dos gordos. E já veio quase todo depenado.
João veio correndo:
-Gan... que ganso o quê, Zé. Isso é pombo. Num percebe que é todo sujo?
-Ah, mas desse tamanhão dá janta das boas!!
Levaram-no. Cortaram umas cebolas e prepararam uma grande panela. Julgavam-no por morto. Afinal, anjo não precisa respirar. Mas bem quando iriam degolá-lo, o pequenino acordou:
-Que lugar é esse? Eu caí? Cadê Ele?
-Eita, Zé! O pombo tá falando!
Os dois humildes homens largaram o facão e perceberam o erro que haviam cometido. O anjinho explicou a eles que era da Cidade de Prata, lar dos anjos, e eles o explicaram que estava em Mujambira, lar de sêu Iraci, de dona Jamélia e de Joaquim Pereira Arruda Dias, o caçador. Confuso, perguntou aos homens se Mujambira ficava no Inferno e se Joaquim Pereira Arruda Dias era o diabo. Dissera que não, embora quisessem dizer sim, e prometeram levá-lo até quem o pudesse ajudar.
Já na delegacia, um polícial encaminhou o anjo ao delegado:
-Então você é um... como disse? Anjo? Bah. Cada maluco que me aparece.
Foi preso por falsidade ideológica. A sentença era outra, mas acabou sendo encarcerado num cubículo com dois assassinos. Um dizendo que o pequeno estava perdido e nada poderia ajudá-lo. O outro, com aparente fé no anjo, pediu sua ajuda. Após alguns dias, os dois tramaram um plano de fuga. Cavaram um buraco, oculto por um colchão, e ao final de um mês realizaram a escapada.
Na extremidade exterior do túnel, Joaquim Pereira Arruda Dias os esperava com uma foice e muita maldade. Entregou-os ao delegado e ganhou uma recompensa polpuda.
O pobre anjo e o infeliz assassino foram separados. Cada um numa cela fria, escura, sem colchão e cheia de insejos e outras criaturas subterrâneas. Passou fome e sede, não piores que a angústia.
Queria voltar a voar. Experimentar novamente a brisa deliciosa no rosto. O frescor do vento no peito. As lufadas de ar nas asas que o levavam mais alto.
Enlouqueceu. Sem o que comer devorou os próprios pés. Não precisaria deles já que aprendera a voar. O tempo passou e, faminto, abocanhou as pernas. Em seguida foi a barriga. O tórax. As mãos, os braços, os ombros e... pronto.
Morreu.
Sobraram cabeça e asas, tudo o que ele precisaria para voar e ser feliz, se ainda estivesse vivo.
Dias depois o cheiro começou a incomodar o guarda do corredor. Abriu a cela e tratou de se livrar da carcaça. Um padre caolho encontrou-a numa lixeira. Achou maravilhosa. Mandou empalhá-la e envernizá-la. Pendurou-a na parede da igreja matriz e deu-lhe nome: barroco.

3 comentários:

  1. a história mais convincente sobre a origem dos anjinhos barrocos!

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  2. ainh, juro que fiquei com muita dó........

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  3. Credo Thu! Pra quê tanta maldade nesse seu coraçãozinho?

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