Certo dia o Otto estava muito nervoso e saiu da coleira. Ele sempre foi meio serelepe, mas naquele dia estava hiperbólico. Acho que a fome deve tê-lo deixado agitado...
Como de costume gritei o Clark. Ele já estava correndo atrás do Otto há muito tempo. Sempre eficiente esse Clark....ou quase. O problema é que ele nunca foi muito rápido, então o Otto acaba conseguindo arrumar alguma encrenca.
Ops! Perdão... que indelicadeza a minha. Otto e Clark são, respectivamente, meu ID e meu Superego. Amigos inseparáveis e eternos companheiros de todas as atividades. O Otto me acompanha desde que nasci. O Clark chegou depois, meio tímido, não falava muito. Depois se soltou. Hoje faz até piada, acredita?
Claro que nem tudo são flores. Otto e Clark são um tanto quanto... diferentes. Sempre brigam. Qualquer assunto é motivo para discordarem e trocarem alguns tabefes, mas tudo sempre acabou bem. As coisas ficaram realmente preocupantes quando nasceu o Charlie. Eu devia ter, sei lá, uns 13 anos, quando o Clark foi atacado. Não sei direito pelo quê, mas tinha cheiro de estrogênio. Deixaram o menino pro Clark cuidar. Coitado. 'Superegoso' como é não conseguiu negar a responsabilidade. O fato é que, depois de um tempo, o moleque cresceu.... e começou a fazer bagunça. Uma criança travessa, um adolescente rebelde e um adulto rabugento. 'Pior que isso só dois disso', já dizia Descartes.
Charlie herdou o que Clark sempre teve de pior: o criticismo. A falta do que fazer deve tê-lo deixado assim. O prazer supremo para ele é me podar. E não podar os galhos podres (desses o Clark sempre deu conta), mas os viçosos, que dariam os melhores frutos. Se por exemplo eu penso em fazer um curso de desenho muito legal, que vai me acrescentar muito, ele logo vem desestimulando: "Ei, panaca! Seu pai não vai dar a grana e você sabe disso. Pára de ficar querendo bobagem". Bom pai que é, o Clark raras vezes reprime Charlie, e o Otto, coitado, mal percebe o que se passa (normalmente fica no canto roendo algum objeto apetitoso... como a hipófise, talvez...). Se tentasse, provavelmente meu pai pagaria o curso sem reclamar (muito) e não se arrependeria. Mas o Charlie é muito persuasivo. Os argumentos dele sempre são dotados de uma maldita lógica incontestável.
Tem uma moça na festinha. Linda. Cabelos pretos. Doida comigo:
_ "Pensa bem mané. Se ela te der um fora a amizade de vocês vai pro saco. Você quer isso, quer?"
_ Mas Charlie... as minhas chances são de 97,3%. É muito difícil de eu tomar um fora.
_ "Sim, eu sei. Mas e SE ela te der um fora?! A chance é pequena, mas existe..."
_ É, talvez você tenha razão...............
Entende o que eu digo?
Só consigo fazer o que realmente quero se manipular o Clark. O Otto me ajuda com piruetas e umas carinhas de dó. Embebedar o Clark costuma funcionar também.
Se eu já tentei me livrar do Charlie? Claro. O problema é que, não importa o que eu faça... o maldito sempre volta depois de uns dois ou três minutos. Uma vez empurrei ele no Abismo (aquele buraco negro que todo mundo tem perto do pâncreas e que alguns chamam de Baço) e mesmo assim ele voltou. E voltou nervoso. Me xingou e aprontou um escândalo. O insistente sobreviveu até ao Grande Porre de 2005. Depois daquele dia acho que perdi um pouco das esperanças de eliminá-lo.
Crianças têm amigos imaginários. O meu é um inimigo. Ruim sem ele. Pior....muito pior com ele.
Um dia eu ainda tento morfina...
quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008
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